A Peste Negra no Portugal Medieval: A História e a Ciência entre o Passado e o Presente

Entrevista a André Silva

Por Sónia Bombico

André Silva é doutorando em História Medieval na Universidade do Porto e integra as equipas de investigação do CITCEM – Universidade do Porto e do CIDEHUS – Universidade de Évora. O seu percurso académico é focado no estudo dos contextos socioculturais e económicos associados à História das Ciências da Saúde, no período medieval em Portugal.

O André encontra-se, actualmente, a desenvolver uma tese de doutoramento sobre a Peste Negra no Portugal Medieval. O que é exactamente a Peste Negra, como e quando é que chegou a Portugal? 

A Peste Negra é a designação tradicionalmente aplicada ao surto inaugural da segunda pandemia de peste, que se prolongou até ao século XIX. Devastou a Europa entre 1347 e 1353, ainda que, na maioria dos territórios, se tenha tratado de um fenómeno concentrado em poucos meses.

A expressão não é da época. Trata-se de uma fórmula adaptada a partir de crónicas escandinavas do século XVII, por historiadores oitocentistas, e que acabou por se tornar canónica. Essa expressão traduz-se literalmente por “Morte Negra”, forma que se mantém nas línguas germânicas (como a Black Death inglesa). Nas línguas românicas, acabou por cristalizar sob a forma de Peste Negra. Durante séculos, foi recordada como a “Grande Peste” ou a “primeira peste”, por exemplo.

A peste é uma zoonose, ou seja, uma doença típica de um conjunto de animais, (neste caso, alguns roedores) que afecta o homem por acidente. É provocada pela bactéria Yersinia pestis, e manifesta-se de várias formas, das quais as mais comuns são a bubónica (através do sistema linfático, que provoca inchaços terríveis nos gânglios linfáticos, os bubões), a pneumónica (primária ou secundária, quando a infecção atinge os pulmões) e a septicémica (quando se produz uma infecção generalizada). A infecção faz-se através de um insecto vector (certas espécies de pulgas dos roedores) que injectam a bactéria quando se alimentam nos seus hospedeiros, ou se contaminam com ela quando picam hospedeiros infectados.

Em Portugal, a entrada ter-se-á feito no início do verão de 1348, e não no início do outono, como algumas fontes indicam, e, provavelmente, prolongou-se até aos primeiros meses de 1349. A contaminação inicial deverá ter acontecido por via marítima, através dos portos portugueses mais movimentados, com Lisboa e Porto à cabeça.

“Em Portugal, a entrada ter-se-á feito no início do verão de 1348 e, provavelmente, prolongou-se até aos primeiros meses de 1349. A contaminação inicial deverá ter acontecido por via marítima”.

O Triunfo da Morte de Pieter Bruegel, o Velho, c. 1562.

A sua investigação pretende compreender e medir o impacto e as consequências da Peste Negra no Portugal de Trezentos. Que tipo de impacto é possível analisar e que fontes existem para o seu estudo?

O impacto da Peste parece ser transversal a toda a Europa, Médio Oriente e Norte de África (pelo menos). Porém, as várias vertentes desse impacto são alcançáveis de maneira distinta em cada um dos territórios. Os estudos dedicados às regiões mais bem documentadas (Inglaterra, Norte de França, Norte de Itália, etc.) focam-se, em primeiro lugar, no impacto demográfico – seja através da mortalidade propriamente dita, ou da reorganização dos sobreviventes, como as alterações nos casamentos e nas estruturas familiares; esta análise acaba por nos conduzir às questões socioeconómicas, de maior alcance temporal e – se os vestígios e os testemunhos sobreviventes tiverem essa riqueza – à influência que o fenómeno teve nas mentalidades colectivas, na arte e na espiritualidade.

Em Portugal, boa parte destas fontes não existe ou existe em conjuntos muito fragmentados. Porém, não creio que isso impeça o estudo do tema no ocidente peninsular: obriga-o a ser indirecto, apenas. Optei por recolher todo o tipo de documentação produzida em duas regiões portuguesas – Entre-Douro-e-Minho e Entre-Tejo-e-Odiana –, ou a elas dirigida, entre 1310 e 1379. Em Portugal, por exemplo, escasseiam para este período os testamentos, que são uma das fontes mais utilizadas nos estudos históricos da peste, mas temos grandes conjuntos de contractos enfitêuticos, ou seja, contractos onde um proprietário (normalmente, uma instituição, pois a esmagadora maioria da documentação privada perdeu-se) cede o domínio útil de uma terra ou imóvel a um enfiteuta (arrendatário), por um período de anos (arrendamento), vidas (emprazamento) ou em perpétuo (aforamento), mediante o pagamento de uma fracção da produção, uma quantidade pré-definida de géneros, uma quantia em dinheiro ou uma mistura de todos estes. As alterações que são feitas aos formulários destes contractos, os seus fluxos de produção, as alterações de rendas entre o período pré-peste e pós-peste, são indicadores de que há um momento de mudança, seja ruptura ou transição.

O estudo da chamada Peste Negra é, por isso, indirecto no caso português. Mas pode ser feito, sobretudo incidindo sobre o impacto social e económico da epidemia.


Danse Macabre de Bernt Notke (Igreja de São Nicolau, Talín, Estónia, século XV).

Os médicos da época não tinham uma ideia concreta sobre a causa da doença. Imagino que isso terá aumentado o pânico e causado dificuldades acrescidas no combate à doença. O que nos dizem as fontes históricas sobre eventuais estratégias de contenção da propagação da Peste Negra, por parte das autoridades, e da forma como a sociedade reagiu à peste?

Há um conjunto de práticas de profilaxia que associamos à peste. Uma dela é precisamente a quarentena, que foi desenvolvida, em moldes mais ou menos parecidos com aqueles que conhecemos, logo na segunda metade do século XIV, no Mediterrâneo cristão. Contudo, é preciso sublinhar que se trata de um processo longo. Quando a Peste Negra atinge a Europa, é a primeira epidemia da doença que atinge o continente em 600 anos. Claro que terão existido pequenas epidemias aqui e acolá, mas nada com o alcance, velocidade e impacto da peste. Por isso, os gestos típicos associados à doença não se aplicam na sua totalidade a este primeiro surto. Certamente, quem podia acabou por fugir, mas não o fez ao primeiro sinal de peste: sobretudo porque, no início, ninguém podia saber bem com o que estava a lidar. Com a evolução dos surtos regionais da pandemia, as autoridades procuraram reagir.

O rei francês, Filipe VI (r. 1328-1350) encomendou um parecer aos mestres da Faculdade de Medicina da Universidade de Paris. O parecer explicava o fenómeno através da corrupção do ar provocada por alinhamento de planetas particularmente funesto.

Na Península Ibérica, por exemplo, há uma profusão de tratados contra a peste, rapidamente produzidos no espaço mediterrânico – sobretudo Catalunha e reino nazarí de Granada, o último reino muçulmano da Península. Estes tratados procuravam, sobretudo, prevenir a doença.

De resto, a medicina medieval, como a antiga, sempre se focou mais na conservação da saúde do que na sua recuperação. Na Peste Negra, as autoridades e as populações foram apanhadas desprevenidas e não sabiam muito bem como agir. Mas, ao contrário de muitos contemporâneos, aprenderam com os acontecimentos, e procuraram proteger-se de surtos posteriores, num processo de décadas, transversal à Europa, que envolve quarentenas portuárias, mais tratados de peste, cordões sanitários primitivos, limpeza possível de espaços públicos, etc., tudo o que evitasse a corrupção do ar por miasmas pestilenciais ou a importação destes. O segredo, segundo estes homens, estava na prevenção ou no rápido estrangulamento de um eventual surto, o que reflecte o reconhecimento da incapacidade de curar a doença e procura evitar males maiores, caos, mortes em massa e disrupção social.


Danse Macabre de Michael Wolgemut, Crónica de Nuremberga de Hartmann Schedel, 1493

“Há um conjunto de práticas de profilaxia que associamos à peste. Uma dela é precisamente a quarentena, que foi desenvolvida logo na segunda metade do século XIV, no Mediterrâneo cristão”.

As últimas centúrias da Idade Média foram marcadas por um crescimento das cidades, associado ao desenvolvimento do comércio. O mapa epidemiológico da COVID-19 em Portugal revela uma maior concentração de casos nos aglomerados urbanos, especialmente do litoral. À semelhança do que observamos actualmente, é espectável que as cidades do Portugal medieval tenham sido mais afectadas pela Peste Negra, comparativamente às áreas rurais?

Nos últimos anos, tem vindo a ser posta em causa a maior incidência de peste em meio urbano. Parece que a doença podia ser tão ou mais impactantes nas áreas rurais. As cidades nunca podem ser artificialmente separadas de um espaço rural com o qual criaram uma relação de dependência mútua. De qualquer forma, será verdade que as cidades actuam como meios privilegiados de contaminação de áreas alargadas, isto é, a partir de uma cidade ou vila, seria contaminada toda a área rural circundante e dela dependente. No caso da Peste Negra, pelo menos numa primeira fase, a doença é introduzida quase sempre por via marítima. Os barcos transportavam ratos com pulgas contaminadas, e a propagação fazia-se mais eficazmente por mar, onde o transporte era mais rápido e volumoso. A partir daí, dar-se-ia a propagação para o interior das regiões. Este deve ter sido o cenário mais habitual, mas não o único.

Um dos quebra-cabeças da peste, tanto para historiadores, como para biólogos, médicos e epidemiologistas que a estudam na actualidade – porque é uma doença que ainda mata centenas por ano – , é o conjunto de variáveis extremamente complexo da ecologia, etiologia e epidemiologia da peste. Também por esse motivo, escolhi analisar duas regiões muito distintas no meu projecto de doutoramento, os já referidos Entre-Douro-e-Minho e Entre-Tejo-e-Odiana (que corresponde essencialmente ao actual Alentejo). Distinguem-se no tipo de povoamento, na consolidação desse povoamento, na organização social do espaço, nas formas de exploração da terra, nas culturas preferenciais, na relação com a coroa, no tipo de território, no clima, nos antecedentes culturais… enfim, o objectivo é perceber quais as diferenças da reacção à doença, no curto e médio prazo, relacionando o elemento humano e ambiental.

“O segredo estava na prevenção ou no rápido estrangulamento de um eventual surto, o que reflecte o reconhecimento da incapacidade de curar a doença e procura evitar males maiores”.

Que estratos da sociedade estiveram mais expostos à doença?

Apesar de ter atingido todos os estratos da sociedade, a peste acabou por afectar mais os que estavam mais expostos. Os mais pobres, os serviçais, etc. Porém, nenhum homem, medieval ou moderno, estava livre de poder ser mordido por uma pulga ou cruzar-se com uma carcaça de um rato, pronta a libertar uma mão cheia de vectores infectados.

A esta certa democracia do macabro, soma-se o factor de novidade da Peste Negra. Creio que é demonstrável que houve mais grupos particularmente expostos à doença na primeira grande epidemia. Porquê? Porque não sabiam com o que lidavam.

No meu trabalho, ainda em desenvolvimento, destaco dois, porque a documentação os destaca também: os clérigos e os tabeliães, ambos pelo mesmo motivo. Os clérigos não terão tido mãos a medir, face às solicitações dos últimos sacramentos dos moribundos. E, numa primeira fase, deslocar-se-iam sem restrições, pelo que devem ter sido particularmente afectados. Naturalmente, seria o clero paroquial o primeiro a ser atingido, devido às suas responsabilidades com a sua comunidade. Mas, em breve, as substituições sucessivas acabavam por afastar os clérigos mais renitentes e começavam a subir a hierarquia da igreja.

Outro grupo que terá sido bastante afectado nesta primeira epidemia foi o dos tabeliães. Estes homens, os notários daquele tempo (a designação mantém-se no Brasil, por exemplo), lidavam com o público diariamente e, tal como os padres, visitariam muitos moribundos para redacção dos respectivos testamentos, ou validação legal de algum pré-existente.

Dito isto, não podemos tomar a mortalidade destes homens, padres e tabeliães, como representativa do conjunto total. Mas constitui uma forma de podermos atravessar os obstáculos da escassez informativa dos documentos e termos uma amostra indesmentível de que a peste teve um impacto real e marcante. E todos, sem excepção, foram afectados de uma forma ou de outra.

“Os clérigos não terão tido mãos a medir, face às solicitações dos últimos sacramentos dos moribundos. E, numa primeira fase, deslocar-se-iam sem restrições, pelo que devem ter sido particularmente afectados”.

A Peste Negra em Tournai, 1349. Chronique et Annales de Gilles le Muisit, Bibliothèque Royale de Belgique, Brussels/Bridgeman Images.

É possível, a partir dos dados disponíveis, estimar e caracterizar a mortalidade em Portugal, associada à Peste Negra?

Neste momento, com o que (não) sabemos sobre a população portuguesa medieval, é muito difícil apontar valores ou ordens de grandeza. Qualquer estimativa teria em conta valores populacionais muito vagos e seria tão inútil quanto artificial. Instintiva e qualitativamente, não parece ser uma mortalidade que atinja valores como os impressionantes 50 ou 65% de outras áreas da Europa. Mas foi, com certeza, muito elevada, muito rápida e profundamente desestabilizadora.

“A História é fundamental na compreensão dos comportamentos perante a doença e a análise comparativa é uma ferramenta fundamental para isso. Os tempos são muito distintos, mas parece haver respostas semelhantes”.

A actualidade tem sido marcada por um conjunto de estudos e projecções sobre o impacto do novo coronavírus na economia e na sociedade. Diariamente novos dados e resultados entram nas equações dos economistas e dos sociólogos, para mencionar apenas alguns dos especialistas empenhados em perceber que mundo se segue. Em que medida considera que a História, e em particular uma investigação como a sua, pode contribuir para perceber o impacto e as consequências de uma pandemia global como a COVID-19?

A História é fundamental na compreensão dos comportamentos perante a doença, individuais e colectivos, e a análise comparativa é uma ferramenta fundamental para isso. Os mesmos economistas e sociólogos ficarão a ganhar se puderem aceder a trabalhos sólidos de historiografia social e económica. Os tempos são muito distintos, mas parece haver respostas semelhantes.

É verdade que hoje, e cada vez mais, o impacto de uma pandemia se medirá sobretudo em índices económicos e sociais, e menos em mortalidade. Mas as epidemias do passado, sobretudo as mais impactantes, também tiveram consequências socioeconómicas de longo prazo e grande alcance. Se nos aproximarmos no tempo, podemos referir a devastação biológica provocada por acidente na América, depois da introdução da varíola pelos europeus, no início do século XVI. Ou as terríveis pandemias de cólera do século XIX, que influenciaram tremendamente tanto a história das epidemias anteriores – e é nesse contexto que nasce a historiografia actual da Peste Negra, por exemplo –, como os cuidados de saúde. E, por último, a ainda tão desconhecida e equivocamente designada Gripe Espanhola, que a historiografia começou a recuperar no seu centenário, e tem lições importantíssimas a dar à actualidade. A História da Saúde tem lições importantíssimas para dar, e acrescenta a dimensão do tempo a fenómenos humanos – e até a doença, propagada pelos hábitos de deslocação e consumo humanos, tem um cariz inegavelmente antropogénico – que procuramos entender, para preparar o futuro. E é um futuro cheio de desafios.


Sugestões de leitura:

SILVA, André (2019) – “A Peste Negra no Portugal de trezentos: Impacto e Consequências – Um Projeto de Doutoramento” in Incipit 7 – Workshop de Estudos Medievais 10Workshop de Estudos Medievais 10Porto, Portugal, 58-68. Porto, Portugal: Biblioteca Digital, Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

BENEDICTOW, Ole J. (2004) – The Black Death, 1346-1353: The Complete History. Boydell Press, Suffolk.

SLACK, Paul (2012) – Plague: A Very Short Introduction. Oxford/New York: Oxford University Press.

The Medieval Globe 1 (2014). Pandemic Disease in the Medieval World: Rethinking the Black Death (número inaugural e especial, editado por Monica H. Green).

World Health Organisation – Plague. Revisto em Outubro de 2017.


Assista, também, à entrevista de André Silva a Flávio Miranda, no âmbito da iniciativa “Pandemias e História na Era da Covid-19” promovida pelo CITCEM – Universidade do Porto.


2 Comments

  1. Prezado André, fico muito feliz em saber que, enfim, a peste negra merecerá um estudo aprofundado em Portugal. Chamo-me Mário Jorge da Motta Bastos, sou brasileiro, professor de História Medieval na Universidade Federal Fluminense (Niterói – Rio de Janeiro – Brasil) e autor, há alguns anos, de um livro sobre as epidemias em Portugal e a reação do(s) poder(es), especialmente o régio, às mesmas. Saberia me dizer se foi descoberto o documento original sobre a Peste Negra em Portugal que a Dra. Virginia Rau afirmava possuir? Boa sorte e saúde. Um abraço do Mário Bastos.

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  2. Excelente trabalho. Sou graduado em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Tenho consciência de que os estudos históricos dessas pandemias servirão para guiar atitudes e práticas no combate ao COVID-19.
    Nos Países pobres onde as práticas sanitárias são deficientes ou sequer existem a probabilidade dessa bactéria reaparecer e se disseminar é preocupante. As cidades brasileiras, todas, não há 100% de instalações de coleta e tratamento de esgoto razão pelas quais os ratos proliferam.

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